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Os latinos dos Estados Unidos e a Mudança Climática

Marcos Cordeiro Pires / Thaís Caroline Lacerda | 06/02/2022 02:01 | Análises
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Nas últimas décadas a população mundial tem enfrentando uma série de eventos climáticos extremos, como secas prolongadas, enchentes, elevadas temperaturas, nevasca, furacões, tufões, etc. A despeito de minorias ideológicas que acreditam em teorias conspiratórias ou que negam a Ciência, há um consenso crescente quanto aos impactos da ação do homem sobre o clima, principalmente pelas atividades econômicas impulsionadas pela Revolução Industrial que teve início no século XVIII.

Os Estados Unidos não escapam dos efeitos da Mudança Climática. A memória do desastre causado pelo furacão Katrina, em 2005, continua viva. A tempestade provocou a morte de 1.800 pessoas e provocou danos de USD125 bilhões. Em 2017, o furacão Maria matou 2.975 pessoas, apenas em Porto Rico, e provocou danos de USD91.1 bilhões. 

Em 2021, os Estados Unidos se depararam com uma série de eventos climáticos extremos, como uma forte nevasca no estado do Texas, em fevereiro, enchentes no estado do Arizona, em agosto, incêndios florestais na Costa Oeste, o furacão Ida que atingiu a Louisiana (o segundo mais forte depois do Katrina), e um tornado que devastou partes do Illinois, Missouri, Kentucky e Tennessee, em dezembro.

Os desastres naturais provocados por eventos climáticos extremos impactam toda a população das regiões por eles afetados, mas a intensidade desses impactos não é sentida da mesma forma por todos os grupos sociais. Geralmente, por habitarem lugares com menor infraestrutura ou por exercerem atividades profissionais com menor nível de qualificação, os pobres são os mais afetados. Como nos Estados Unidos os piores indicadores sociais estão relacionados aos grupos de afro-americanos e latinos/hispânicos, e são esses os mais afetados negativamente pela Mudança Climática.

Nesse sentido, vale a pena mencionar dois estudos publicados no segundo semestre de 2021 que mostram como o tema da vulnerabilidade climática atinge de maneira mais intensa as minorias étnicas dos Estados Unidos. O primeiro deles da “Agência de Proteção Ambiental” (EPA, na sigla em inglês), chamado “Climate Change and Social Vulnerability in The United States: a Focus on Six Impacts”, lançado em setembro de 2021. 

O estudo analisa o impacto da mudança climática a partir de seis variáveis: (a) Saúde e qualidade do ar; (b) Saúde e temperaturas extremas; (c) Trabalho e temperaturas extremas; (d) Tráfego e inundação costeira; (e) Propriedades e inundação costeira; e (f) Propriedade e inundação no interior do país. As análises apresentadas no relatório primeiro identificam as áreas nos Estados Unidos contíguos (EUA) onde os impactos são projetados para serem os mais altos sob futuras mudanças de temperatura global e aumento do nível do mar. Em seguida, o estudo estima algumas possibilidades de impacto na vida daqueles que são socialmente vulneráveis, comparando os que vivem entre os que não vivem nessas áreas. Dos quatro grupos socialmente vulneráveis examinados, é provável que as minorias vivam atualmente em áreas onde as análises projetam os maiores níveis de impactos da mudança climática, como aumento 2 °C na temperatura global e a elevação de 50 cm do nível do mar. Nesse sentido, informa a pesquisa:

• Indivíduos negros e afro-americanos são 40% mais propensos do que indivíduos não-negros e não-afro-americanos a viver atualmente em áreas com os maiores aumentos projetados nas taxas de mortalidade devido a mudanças causadas pelo clima em temperaturas extremas. Além disso, indivíduos negros e afro-americanos são 34% mais propensos a viver em áreas com os maiores aumentos projetados nos diagnósticos de asma infantil devido às mudanças climáticas e à poluição do ar por partículas.

• Indivíduos hispânicos e latinos são 43% mais propensos do que indivíduos não-hispânicos e não latinos a viver em áreas com as maiores perdas de horas de trabalho projetadas em indústrias expostas ao clima, devido aos efeitos causados pelo clima em dias de alta temperatura. Indivíduos hispânicos e latinos também são 50% mais propensos a viver em áreas costeiras com os maiores aumentos projetados em atrasos de tráfego devido a mudanças climáticas causadas por inundações de maré alta.

• Indivíduos índios americanos e nativos do Alasca são 48% mais propensos do que indivíduos não-nativos-americanos e do Alasca a viver em áreas onde a maior porcentagem de terra é projetada para ser inundada devido à elevação do nível do mar. Indivíduos indígenas americanos e nativos do Alasca também são 37% mais propensos a viver em áreas com as maiores perdas de horas de trabalho projetadas em indústrias expostas ao clima devido à elevação da temperatura.

• Indivíduos asiáticos são 23% mais propensos do que indivíduos não-asiáticos a viver atualmente em áreas costeiras com os maiores aumentos projetados em atrasos de tráfego devido a mudanças climáticas causadas por inundações de maré alta.
O segundo estudo foi divulgado pelo Pew Research Center, em outubro de 2021, intitulado “Most U.S. latinos say global climate change and other environmental issues impact their local communities”, e aponta que “A maioria dos latinos nos Estados Unidos diz que a mudança climática global é uma preocupação importante, com a maioria dizendo que afeta sua comunidade local pelo menos alguns. Os latinos apoiam amplamente uma série de medidas políticas para lidar com as mudanças climáticas e outras questões ambientais.” 

Ainda conforme a pesquisa, “cerca de oito em cada dez hispânicos dos EUA (81%) dizem que abordar a mudança climática global é uma das principais preocupações ou uma das várias preocupações importantes para eles pessoalmente, com 39% dizendo ser uma das principais preocupações pessoais. Em comparação, uma parcela menor de não-hispânicos (67%) diz que abordar a mudança climática global é pelo menos uma das várias preocupações importantes, devido em grande parte a uma parcela menor que diz ser uma das principais preocupações (29%). Além disso, uma parcela maior de não hispânicos do que hispânicos diz que abordar a mudança climática global não é uma preocupação importante para eles (32% vs. 18%)”.

A pesquisa também descobriu que a maioria (56%) dos hispânicos dos EUA dizem que a área onde vivem passou por um evento climático extremo no ano passado. É preciso que considerar que Califórnia, Texas e Flórida abrigam mais da metade da população hispânica do país, e a população hispânica de cada estado aumentou mais de 1 milhão de 2010 a 2020. Esses estados experimentaram um aumento de incêndios florestais, calor extremo, nevascas, seca e inundações nos últimos anos. Outra descoberta importante diz que os hispânicos também são mais propensos do que os não-hispânicos a pensar que a atividade humana, como a queima de combustíveis fósseis, contribui em parte ou em grande parte para a mudança climática global (84% vs. 76). 

Esta percepção do eleitorado latino/hispânico é muito relevante se considerarmos que o tema da mudança climática provoca debates acirrados entre a maior parte dos eleitores democratas e republicanos, sendo os primeiros entusiastas do tema e os segundos duros críticos do ambientalismo. Os democratas defendem a reconversão energética, tal como a proposta de Joe Biden acerca de um New Green Deal. Já os republicanos continuam defendendo a utilização de fontes energéticas baseadas em combustíveis fósseis, como o petróleo, shale oil e carvão. Por conta desta divisão, inclusive entre democratas, a parte ambiental do Build Back Better (BBB) continua bloqueada nos debates do Congresso, principalmente pela ação do senador Joe Manchin (D-WV), que afirmou em 1 de fevereiro de 2022 que o BBB estava morto.
 
O tema da mudança climática é sensível entre a comunidade latino/hispânica porque a maior parte de seu contingente se concentra em regiões que têm sofrido muito com eventos climáticos extremos, como os furacões que atingem o Golfo do México e a costa do Atlântico, a elevação do nível do mar que tem provocado alagamentos em regiões urbanas do sul da Flórida, as elevadas temperaturas que provocam incêndios florestais na Califórnia, além da queda no suprimento de energia elétrica e de água potável. A situação é bastante crítica no “Estado Dourado”, tal como destaca o The Guardian. “As agências de água das regiões da Califórnia atingidas pela seca, que atendem a 27 milhões de habitantes e 750.000 acres de terras agrícolas, não receberão a água que solicitaram do estado em 2022, além do que é necessário satisfazer necessidades críticas para saúde e segurança, anunciaram autoridades estaduais na quarta-feira (1 de dezembro de 2021). É a primeira vez em que o departamento de recursos hídricos emitiu uma alocação de água de 0%, um marco que reflete as condições terríveis na Califórnia, à medida que a seca continua a atingir o estado mais populoso do país e os reservatórios caíram para níveis historicamente baixos”.

Além dos impactos econômicos da seca prolongada na Califórnia, é preciso considerar os impactos sociais, já que a agricultura do estado emprega centenas de milhares de trabalhadores imigrantes, muitos deles em caráter temporário, pois apenas são admitidos no período da colheita, principalmente de frutas. Ademais, como ressaltado pela pesquisa da EPA, citada anteriormente, esses trabalhadores são submetidos a condições climáticas extremas, como as elevadas temperaturas.

Na Flórida, os impactos da mudança climática se mostram mais desafiadores. A região da área metropolitana de Miami é mais exposta ao aumento do nível do mar e aos furacões. The acordo com o New York Times, “o sul da Flórida, plano e de baixa altitude, fica sobre calcário poroso, o que permite que o oceano inche através do solo. Mesmo quando não há tempestade, o aumento do nível do mar contribui para inundações de maré mais significativas, onde as ruas se enchem de água mesmo em dias ensolarados. A expansão da água salgada ameaça estragar o aquífero subterrâneo que fornece água potável da região e rachar velhos canos de esgoto e fossas sépticas envelhecidas. Ele deixa menos espaço para a terra absorver líquido, então as águas das enchentes permanecem por mais tempo, seu escoamento poluindo a baía e matando os peixes”.

Uma reportagem do Business Insider exemplifica este problema ao relatar as dificuldades de um morador do bairro de Shorecrest, em Miami: “Quando a enchente é muito forte, a água não enche apenas as ruas do lado de fora da casa de Manolo Pedraza. Ele borbulha através de um ralo do banheiro. Pedraza mora em Shorecrest, um bairro ao norte de Miami que enfrenta inundações com tanta regularidade que acontecem mesmo quando não chove. Tudo o que é preciso para encher as ruas até a altura do joelho nesses dias é uma lua cheia. A enchente sobe por bueiros, impossibilitando um percurso sem encontrar a água, que se mistura com o esgoto e o que mais foi arrastando pelo caminho”.

Considerando que a região é muito vulnerável ao aumento do nível do mar, as regiões mais pobres da cidade, distantes das praias e em locais mais elevados e não sujeitos a inundações, estão sendo ameaçadas pelo processo de “gentrificação”, ou seja, a população mais pobre está sendo expulsa de suas casas pelo aumento dos preços de aluguéis. Moradores mais remediados ocupam o espaço por conta de uma nova onda de investimentos imobiliários. É o caso do bairro “Little Haiti”. Segundo a dissertação de mestrado de Elizabeth Santiago, da Universidade de Michigan, “Mais longe das cobiçadas propriedades à beira-mar, bairros como Little Haiti têm sido historicamente considerados menos desejáveis do que outras partes de Miami. No entanto, à medida que a crise climática se aproxima, a diversidade de Little Haiti e sua relativa proteção contra inundações e o rápido aumento do nível do mar estão atraindo famílias com alto nível socioeconômico”.

Para além das preocupações sobre os impactos da mudança climática nos Estados Unidos, é preciso adicionar que parte da comunidade de origem latino/hispânica enfrentaram eventos climáticos extremos nos seus próprios países de origem. Vale mencionar que a América Central foi atingida por dois grandes furacões no final de 2020, o Eta e o Iota, em menos de duas semanas. Conforme a ONU, “com o furacão Iota, aumentou a insegurança alimentar na Guatemala que já sofria com seca, redução de colheitas e dificuldades econômicas causadas pela Covid-19. Antes da passagem do Eta, cerca de 3,3 milhões de pessoas na Guatemala já sofriam necessidades humanitárias. Agora, quase 400 mil pessoas foram deslocadas e mais de 650 mil precisam de ajuda”. Por conta desses desastres naturais, aumentou o fluxo migratório do Triângulo norte da América Central rumo aos Estados Unidos, superando o fluxo de mexicanos, tal como já mencionamos em análises anteriores deste Latino Observatory.

Outro evento climático que teve repercussões sobre a migração latina para os Estados Unidos foi o furacão Maria, em setembro de 2017, que devastou grande parte das ilhas do Caribe, particularmente Porto Rico. Cerca de 3.000 pessoas morreram em decorrência da tempestade. A infraestrutura da ilha foi praticamente destruída, assim como milhares de residências e empresas. Cálculos do governo dos Estados Unidos estima que cerca de 200 mil pessoas deixaram Porto Rico entre 2017 e 2018, fugindo do estado de calamidade deixado pela passagem do furacão.

Diante do quadro onde as comunidades latinas são fortemente impactadas pelos efeitos da mudança climática, é importante considerar que existe um amplo movimento ambientalista latino. Na última atualização de nosso site, foi destacada a atuação da ONG Green Latinos, principalmente a conferência que reuniu diversos ambientalistas dos Estados Unidos, o Secretário de Transportes Pete Buttigieg e representantes de grandes organizações ambientalistas como Greenpeace, WWF, EDF, entre outros.

Outra informação útil diz respeito ao grau de ativismo dos latinos. No artigo “Climate Change Activism Among Latino and White Americans”, Mattew Ballew et al. descrevem uma pesquisa mostra que os latinos possuem atitudes pró-ambientais particularmente fortes e apoio a políticas para reduzir as mudanças climáticas em comparação com os não latinos. “Os principais indicadores dos níveis significativamente mais altos de engajamento político dos latinos incluem maiores percepções de risco, visões de mundo igualitárias, normas injuntivas pró-ambiente, eficácia política coletiva e maiores efeitos de rede social”.

Concluindo esta análise, é importante mencionar que a pauta ambientalista se associa aos movimentos sociais progressistas ligados ao Partido Democrata. Nesse aspecto, as lideranças latinas mais destacadas estão alinhadas a este segmento. Conforme discutimos em outras análises, o primeiro ano de governo de Joe Biden foi frustrante do ponto de vista dos setores mais à esquerda do Partido Democrata, pois além de não conseguir reverter as leis de imigração restritivas criadas no governo anterior, de não conseguir viabilizar um pacote de medidas em favor dos grupos mais vulneráveis, a pauta ambientalista está parada no Congresso. A desilusão sobre as dificuldades em se avançar a pauta mais progressista pode desmobilizar a grande frente que se formou nas eleições de 2020 em favor de Biden. 

Por seu turno, os republicanos continuam alinhados com as pautas anti-ambientais e jogam todo o seu peso em bloquear as iniciativas que coloquem em risco seus financiadores ligados aos setores energéticos tradicionais, como petróleo e carvão. Em meio à polarização política, é preciso advertir que o calendário dos eventos climáticos extremos não se ajusta às demandas eleitorais de curto prazo. Temperaturas extremas, inundações, incêndios florestais, furacões, secas e todos os problemas sanitários, econômicos e sociais que a eles se associam deveriam estar no topo da pauta política dos Estados Unidos. Infelizmente não!

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