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TROPAS NAS CIDADES SANTUÁRIO: SEGURANÇA, LEGALIDADE E DIREITOS HUMANOS NA ADMINISTRAÇÃO TRUMP (2025)

Thaís Caroline Ataide Lacerda / Greiciele da Silva Ferreira | 17/11/2025 14:34 | Artigos
IMG Nicolas Pinault, Voice of America

1 INTRODUÇÃO

A política migratória da administração Trump tem se consolidado como um dos eixos centrais de sua estratégia governamental e eleitoral, articulando mecanismos repressivos e discursos securitários para construir legitimidade política. Diversos estudos indicam que, desde o primeiro mandato, a imigração passou a ser tratada não apenas como questão administrativa, mas como instrumento de mobilização eleitoral, especialmente junto a segmentos conservadores que associam migração à ameaça econômica e criminal.


Algumas medidas como a ampliação de detenções pelo U.S. Immigration and Customs Enforcement (ICE), o restabelecimento de deportações aceleradas e o envio de tropas federais a chamadas “cidades santuário” exemplificam esse movimento. Matérias da Associated Press e CBS News mostram que, nos últimos meses, o Executivo federal intensificou operações em estados governados por democratas, gerando conflitos com autoridades locais e abrindo disputas judiciais sobre a constitucionalidade dessas intervenções. Além disso, ativistas de direitos humanos, têm documentado a separação de famílias, a deportação sumária de solicitantes de refúgio e relatos de detenções prolongadas em condições degradantes, impactos diretos da política migratória orientada pela lógica da dissuasão punitiva.


Avaliamos que, do ponto de vista discursivo, o governo mobiliza narrativas baseadas em medo e insegurança. Observa-se que em pronunciamentos oficiais, Trump e membros de seu gabinete associam imigrantes a aumento de criminalidade e terrorismo, mesmo quando dados federais não corroboram essa relação. Pesquisas divulgadas de institutos e corporações, como o FBI e o Cato Institute (2023–2025) apontam que imigrantes, documentados ou não, não apresentam taxas superiores de envolvimento em crimes violentos quando comparados com os naturais. Ainda assim, o discurso securitário produz um imaginário público favorável ao endurecimento governamental nos processos migratórios.


Portanto, o problema central não se limita ao conteúdo jurídico das políticas migratórias, mas ao modo como o governo Trump tem instrumentalizado a migração sob o aparato de estado como recurso político, reforçando identidades nacionais excludentes e produzindo efeitos concretos sobre a vida de refugiados, solicitantes de asilo e comunidades latino-americanas radicadas nos Estados Unidos. A política migratória atual tem transformado populações vulneráveis em capital simbólico, segundo concebido por Pierre Bordieu, pois converte sofrimento humano em benefício eleitoral e poder político.


Na presente análise, partimos da hipótese central de que a atual política migratória dos Estados Unidos combina repressão estatal e cálculo político, convertendo a pauta da segurança de fronteiras em instrumento de mobilização eleitoral. O governo constrói uma narrativa que associa imigração a criminalidade e desordem, ainda que os dados empíricos não confirmem tal correlação. Outro relatório recente do Pew Research Center mostra que 73% dos republicanos e dos independentes com tendência republicana, classificam a imigração ilegal como um problema muito significativo para a nação. Essa afirmação coincide com períodos de intensificação retórica do Executivo, especialmente em épocas de votação de pacotes legislativos e ciclos eleitorais regionais. A ampliação das ações do ICE, no campo operacional, e a adoção de mecanismos de deportação acelerada, foram acompanhadas por um aumento significativo de detenções. Esses elementos sustentam a hipótese de que a política migratória cumpre dupla função: por um lado, aumentar a capacidade repressiva do estado sobre populações migrantes; por outro, produzir ganhos políticos ao mobilizar o medo como linguagem pública, reforçando fronteiras simbólicas e identitárias entre “nacionais” e “estrangeiros”. A política migratória torna-se, assim, tanto uma prática disciplinadora quanto um recurso de legitimação eleitoral, uma marca e força do governo Trump 2.0.


2 CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO

Nos Estados Unidos, a Posse Comitatus Act (PCA), aprovada em 1878, proíbe o uso do Exército das Forças Armadas para funções de aplicação da lei civil. O nome desta lei surge do conceito de posse comitatus, ou “poder do condado”, que é a autoridade de um xerife para convocar cidadãos para ajudá-lo a manter a paz e cumprir a lei. Essa lei foi promulgada a fim de limitar o exército federal na aplicação de funções policiais internas após o uso do Exército para aplicação da lei após a Guerra Civil norte-americana, em resposta a abusos cometidos durante a Reconstrução. Originalmente aplicava-se apenas ao Exército, sendo estendida para incluir a Força Aérea em 1956, seguida da Marinha, do Corpo de Fuzileiros Navais e da Força Espacial em 2021.


Contudo, a “Lei da Insurreição de 1807” (Insurrection Act of 1807) prevê algumas circunstâncias nas quais o uso das Forças Armadas em solo americano é permitido, sendo uma das poucas exceções à Posse Comitatus Act. Ela permite que o presidente use as Forças Armadas para restaurar a ordem, garantir a aplicação das leis e proteger direitos civis. As principais circunstâncias previstas nesta lei são: a) Quando um governador ou legislatura estadual solicita auxílio federal para suprimir alguma insurreição, revolta ou distúrbio que o Estado não consegue controlar sozinho. Um exemplo seria o caso dos “Distúrbios de Detroit” (1967) (Detroit Riot, 1967), no qual tropas federais foram enviadas após pedido do governador de Michigan. O “Detroit Riot” teve seu estopim a partir de uma batida policial em um bar clandestino na madrugada do dia 23 de julho de 1967, em um bairro predominantemente negro, além disso, o alimento do confronto era uma combinação de racismo, brutalidade policial e pobreza generalizada vividos na época.


Nesse sentido, sem o consentimento do estado, em casos de obstrução da lei federal, caso a aplicação das leis federais seja impedida e as autoridades locais não consigam restaurar a ordem. O presidente pode agir mesmo sem a solicitação do estado caso haja, 1) insurreição contra o governo federal; 2) obstrução à execução das leis dos EUA; 3) situações que impossibilitem a aplicação da lei por meios normais. Um exemplo deste caso seria a “Crise de Little Rock” (1957), quando nove estudantes negros, os “Nove de Little Rock”, tentaram se matricular na então segregada Central High School em Little Rock, Arkansas, após a decisão da Suprema Corte em Brown vs. Board of Education, que ditava como inconstitucional a segregação de crianças em escolas públicas com base em suas raças ou etnias. O conflito escalonou quando o governador do estado bloqueou a entrada dos estudantes, levando o então presidente Dwight D. Eisenhower a enviar tropas federais para protegê-los e garantir a devida aplicação da lei.


Por último, 4) Para proteger direitos civis e constitucionais quando há negação dos mesmos e as autoridades estaduais não tomam medidas para proteger seus cidadãos. Essa cláusula foi usada durante o movimento dos Direitos Civis, nas décadas de 1950 e 1960, que lutou contra a segregação racial e a discriminação, principalmente contra os afro-americanos, cujo objetivo principal era acabar com a segregação legalizada, a discriminação e a privação de direitos que afetavam os afro-americanos.


Os episódios anteriores ilustram como, embora a Posse Comitatus Act restrinja o emprego militar em tarefas policiais, o recurso à Insurrection Act ou a exceções específicas tem sido utilizado historicamente em situações consideradas emergenciais ou de grave perturbação da ordem.


Durante o primeiro mandato de Donald Trump (2017-2021), a imigração foi tratada, desde a campanha, não apenas como tema econômico ou humanitário, mas sim como questão de segurança nacional. Essa abordagem visava uma securitização da imigração, enquadrando-a como uma clara ameaça à soberania, à segurança interna e à identidade americana. Logo no início de seu primeiro mandato, em 25 de janeiro de 2017, Trump assinou o Executive Order 13767 “Border Security and Immigration Enforcement Improvements”, que estabeleceu que “a segurança da fronteira é criticamente importante” e que imigrantes que entraram ilegalmente ou permaneceram após visto representavam “ameaça à segurança nacional epública. Assim, a primeira administração Trump dava prioridade à remoção de não-cidadãos, inclusive aqueles sem histórico criminal, o que representou uma mudança comparada aos períodos anteriores.


Quanto às “cidades santuário” (jurisdições que limitam a cooperação com agentes federais de imigração), a política de Trump buscou punir essas jurisdições ao condicionar ou retirar seus fundos federais, ou pressioná-las a cooperar. Com a transformação da imigração em questão de segurança nacional, com ênfase no controle e na remoção em detrimentos dos vínculos de integração ou direitos dos imigrantes, o discurso que Trump vem utilizando, como observamos anteriormente, se baseia na associação entre a imigração irregular e o crime ou insegurança e, nesse sentido, que as jurisdições “santuário” estariam protegendo criminosos estrangeiros. Dada essa lógica, as cidades que se recusaram a cooperar com agentes federais ou a honrar as detenções de Imigração (immigration detainers) do ICE, passaram a ser alvos simbólicos e concretos da política federal, gerando tensões com governos locais.


No primeiro mandato Trump (2017-21), a ênfase foi em imigração e cidades santuário: ampliação de interior enforcement (fiscalização interna), condicionamento de verbas, retórica de segurança, mas menos mobilização explícita em grande escala de tropas federais em cidades-santuário. Vale destacar que não há, no primeiro mandato, uma mobilização massiva relatada de tropas federais para policiamento urbano em “cidades santuário” em igual escala ao que poderia estar sendo sugerido para 2025. Houve, porém, forte retórica, operações de interior enforcement e ameaças legais e políticas em diferentes condutas e níveis. Em sua nova fase, no Governo Trump II, avaliamos que essa agenda ganha nova força, com reativação de pressões federais sobre cidades santuário e indicações de mobilização de força federal ou tropas em contextos urbanos, elevando o debate para a interseção entre segurança, legalidade (militarização doméstica) e direitos humanos.


A administração Trump de 2025 assinou uma ordem executiva em 28 de abril de 2025 para o “crack down” nas cidades santuário, condicionando fundos, exigindo listas de jurisdições que não cooperam, notificações ao Departamento de Segurança Interna (DHS) e Departamento de Justiça (DOJ), entre outras ações controversas. Em paralelo há, ao mesmo tempo, relatos de mobilização ou ameaça de mobilização de tropas da Guarda Nacional em jurisdições urbanas onde haveria protestos ou operações de imigração. Cidades como Portland, Oregon ou Los Angeles são mencionadas em reportagens recentes. Em 2025 o DHS e o DOJ identificaram e expuseram “jurisdições santuário” que, segundo o governo, obstruem a aplicação da lei federal de imigração, afirmando em seu comunicado à imprensa que “cidades-santuário protegem imigrantes ilegais, criminosos perigosos, livrando-os de suas consequências e colocando as forças da lei em grave perigoe também apresenta uma lista completa das cidades consideradas santuários.

 

3 MARCO LEGAL E AUTORIDADE PRESIDENCIAL

A discussão sobre o envio de tropas federais a cidades santuário exige compreender o quadro normativo que delimita e, ao mesmo tempo, possibilita, o uso de forças militares e paramilitares em solo nacional. O marco jurídico central para esse debate é a Posse Comitatus Act (1878), que, conforme apresentado anteriormente, restringe o uso das Forças Armadas na aplicação da lei doméstica. Entretanto, a legislação norte-americana combina proibições, exceções e permissões condicionadas, criando um regime ambíguo que permite interpretações expansivas por parte do Executivo, especialmente em períodos de conflito político ou de demandas securitárias.


No caso da administração Trump, os argumentos legais utilizados para justificar o envio de tropas federais ou da Guarda Nacional têm se apoiado principalmente em três instrumentos jurídicos: Posse Comitatus Act, Insurrection Act (1807) e o regime de mobilização da Guarda Nacional sob Title 10 e Title 32 do U.S. Code. A esses dispositivos somam-se memorandos e ordens executivas recentes, como o Memorando Presidencial de 7 de junho de 2025, que autoriza o Departamento de Defesa a apoiar o Departamento de Segurança Interna em “proteção de instalações e agentes federais”.


O Posse Comitatus Act estabelece restrições ao emprego do Exército e da Força Aérea como força policial interna. Contudo, essa limitação não é absoluta. A principal exceção histórica é a Insurrection Act (1807), que permite ao Presidente: atuar a pedido de governos estaduais; sem consentimento dos estados, quando houver revolta, obstrução da execução de leis federais ou ameaça a direitos civis; proteger propriedade federal e assegurar o cumprimento da lei. Essa última cláusula tornou-se a base jurídica central em 2025. O Memorando de 7 de junho de 2025 sustenta que as Forças Armadas podem fornecer segurança a instalações e agentes do DHS, o que cria margem para atuação militar em áreas urbanas vinculadas a operações migratórias. No âmbito do Title 10 vs. Title 32 a controvérsia mais visível ocorre em torno da Guarda Nacional, pois sob o Title 32 as tropas permanecem sob comando dos governadores, já sob o Title 10, as tropas são federalizadas e passam ao comando direto do Presidente. Essa diferenciação ganha relevância prática em episódios de segurança interna, fronteiras e ordem pública, e tem sido objeto de controvérsia política e constitucional. O debate intensificou-se durante os protestos nacionais de 2020, deflagrados após a morte de George Floyd e marcados por mobilizações contra violência policial e racismo sistêmico. Diversos estados mobilizaram suas unidades da Guarda Nacional sob o Title 32, enquanto o governo federal sinalizou a possibilidade de federalização sob o Title 10, gerando disputas entre autoridade presidencial e autonomia estadual. Em Washington, D.C., a atuação ocorreu sob autoridade federal direta, já que o território não possui governador, o que levantou questionamentos sobre transparência e limites do emprego de militares em atividades típicas de policiamento. Esses episódios demonstram que, embora o arcabouço legal seja relativamente claro, sua aplicação tem produzido tensões recorrentes entre poderes federais e estaduais, além de debates jurídicos sobre extensão, proporcionalidade e controle civil.


Nesse contexto, governadores de estados como Califórnia, Oregon e Illinois recusaram-se a disponibilizar suas tropas para operações migratórias. Em resposta, o governo federal buscou a federalização compulsória de unidades estaduais, gerando litígios como Illinois vs. Trump e California vs. Trump.

 

4 IMPACTOS SOBRE DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA PÚBLICA

A intensificação das políticas migratórias sob a administração Trump II, especialmente após 2025, tem gerado efeitos concretos sobre direitos humanos, segurança pública e coesão social nas jurisdições classificadas como “cidades santuário”. As medidas repressivas configuram um cenário de risco elevado para as garantias civis e liberdades fundamentais. Em diversos estados, organizações de direitos humanos e defensores públicos relataram episódios de detenções arbitrárias, operações noturnas conduzidas por agentes federais e monitoramento eletrônico de grupos de defesa de migrantes e lideranças comunitárias. A sobreposição entre aparato de imigração e segurança nacional contribui para um processo de criminalização difusa da presença imigrante, que passa a ser tratada como ameaça potencial e não como questão social ou humanitária.


No plano dos direitos civis, o uso de tropas federais e forças da Guarda Nacional em atividades de controle migratório levanta preocupações quanto à proporcionalidade e legalidade das ações. Relatos de campo e registros da imprensa (Los Angeles leaders impose curfew as protests against Trump's immigration crackdown continue | The Associated Press) indicam o emprego de táticas de dispersão típicas de contextos militares, como gás lacrimogêneo, granadas de efeito moral e detenções preventivas, durante manifestações pacíficas em cidades como Portland, Los Angeles e Chicago. Tais práticas configuram potenciais violações da Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que garante o direito à livre expressão e reunião, além de colocarem em xeque o princípio do controle civil sobre as forças de segurança. O monitoramento de ativistas e jornalistas por meio de programas de inteligência, em nome da “segurança de fronteiras”, amplia o risco de vigilância política e intimidação de dissidentes.


Esse fenômeno produz efeitos sociais particularmente importantes e preocupantes sobre comunidades imigrantes e refugiada. A presença constante de agentes do ICE e de unidades federais em bairros de alta concentração de imigrantes tem provocado medo generalizado e retração da vida pública. Diversas organizações locais relatam queda acentuada no número de denúncias de crimes, especialmente casos de violência doméstica, tráfico e exploração laboral, porque vítimas e testemunhas temem ser detidas ou deportadas ao interagir com as autoridades. A partir dos relatos existentes, avalia-se que esse fenômeno de “subnotificação por medo” compromete a segurança pública e rompe laços de confiança entre a população e as instituições. Além disso, há registros de deslocamentos internos de famílias que abandonam cidades alvo de operações federais para buscar refúgio em localidades menores ou em outros estados, sem garantia de proteção legal, reforçando a vulnerabilidade socioeconômica dessas comunidades (Como pressão de Trump sobre 'cidades-santuário' pode afetar brasileiros nos EUA? - BBC News Brasil).


Há ainda o ponto de vista das políticas locais de segurança, pois a presença de forças federais tem produzido tensões institucionais relevantes. Prefeitos e chefes de polícia em várias cidades-santuário, como San Francisco, Seattle e Boston, argumentam que a interferência federal desestrutura estratégias de policiamento comunitário construídas ao longo de décadas. O modelo local, historicamente voltado à prevenção e à cooperação social, depende da confiança das comunidades, que é corroída pela associação entre agentes públicos e deportação somada com violência. Dessa forma, a imposição de uma lógica de “segurança nacional” em contextos de segurança urbana altera o equilíbrio federativo e dificulta a implementação de políticas de integração e acolhimento. Há ainda notícias de que muitos departamentos de polícia relatam, inclusive, dificuldade de recrutamento de agentes bilíngues e perda de legitimidade junto a populações de imigrantes, que passam a evitar qualquer contato institucional.


Nesse sentido, o impacto sobre direitos humanos não se limita às violações diretas, mas também se expressa no plano simbólico e discursivo. A retórica presidencial que associa imigração a criminalidade reforça estigmas raciais e étnicos, legitimando práticas de discriminação e hostilidade social. Casos documentados de agressões e ataques de ódio (hate crimes) contra latino-americanos e muçulmanos aumentaram em paralelo a picos de intensificação retórica do Executivo, segundo dados preliminares do FBI de 2024–2025 (Hate Crimes | Facts and Statistics). Assim, o discurso oficial opera como catalisador de comportamentos sociais excludentes e de naturalização da violência institucional, reproduzindo o ciclo de medo e repressão que sustenta a própria agenda migratória.


No conjunto, observa-se uma interdependência entre a política migratória e a degradação da segurança pública. O aparato federal, concebido sob lógica de dissuasão punitiva, enfraquece as capacidades locais de prevenção e mediação, substituindo políticas de cidadania por estratégias de contenção. As medidas de detenção e deportação em massa não apenas produzem trauma e desagregação familiar, como também sobrecarregam tribunais locais e serviços sociais. O resultado é um ambiente de insegurança ampliada, em que tanto imigrantes quanto cidadãos estadunidenses são afetados por uma cultura de vigilância e exceção permanente.


Em síntese, os impactos sobre direitos humanos e segurança pública decorrentes da atual política migratória revelam um paradoxo: em nome da segurança, ampliam-se práticas que minam os próprios fundamentos democráticos e jurídicos do estado. A criminalização da migração e a militarização da gestão interna da ordem pública geram um ciclo de erosão institucional e de insegurança social duradoura, cujo custo recai, sobretudo, sobre as populações mais vulneráveis, mas cujas implicações alcançam todo o tecido democrático norte-americano.

 

5 REAÇÕES POLÍTICAS E LEGAIS

A ofensiva da administração Donald Trump em direção às chamadas “cidades santuário” desencadeou uma cadeia de reações políticas e judiciais que articulam tensões entre níveis de governo, interpretações constitucionais e mobilizações da sociedade civil. Diversos governadores e prefeitos das jurisdições alvo da política migratória rejeitaram publicamente a intromissão federal, anunciando recusa em colaborar com operações do ICE ou até mesmo ameaçando sanções jurídicas. A posição dessas administrações locais se apoia, em parte, no argumento de que os efeitos de “cooperação automática” com o ICE minariam a confiança das comunidades imigrantes na polícia local, reduzindo a comunicação entre imigrantes e autoridades locais e comprometendo a segurança pública geral. Em alguns casos, o governador do estado correspondente também manifestou objeção. Um exemplo significativo: o governador do estado de Minnesota, Tim Walz, qualificou as exigências do DOJ como “algum tipo de agenda política equivocada” e “fundamentalmente incompatível com os nossos princípios de fundação como nação.


Essas reações políticas revelam uma lógica de resistência local que busca preservar autonomia municipal ou estadual frente ao poder federal, ao mesmo tempo em que expõem o caráter mobilizatório da questão migratória, não apenas como política administrativa, mas como disputa simbólica no campo eleitoral.


O Judiciário federal tem desempenhado papel central ao intermediar a crise entre governo federal e jurisdições locais. Uma das decisões mais importantes ocorreu em 24 de abril de 2025, quando o juiz William H. Orrick III, da Corte Distrital de São Francisco, concedeu liminar proibindo o governo Trump de reter ou condicionar repasses federais a cidades e condados por suas políticas de “santuário”. Ele considerou, entre outros motivos, que tais ameaças causavam dano irreparável, como incerteza orçamentária, violação de direitos constitucionais e comprometimento da confiança entre governo local e comunidade. Posteriormente, em agosto de 2025, o mesmo juiz ampliou sua ordem para abranger 34 jurisdições adicionais (incluindo, por exemplo, Los Angeles, Chicago, Boston, Denver) impedindo cortes de financiamento federal. Além disso, em setembro de 2025, o estado de Oregon e a cidade de Portland ajuizaram ação contra o governo Trump por conta da mobilização de tropas federais, especificamente da Guarda Nacional, em território local. A juíza Karin Immergut concedeu uma liminar por volta de 4 de outubro de 2025, impedindo o envio dessas tropas sob o argumento de não cumprimento dos requisitos de ativação da Guarda.


Paralelamente à mobilização institucional, o papel das organizações não-governamentais, grupos de defesa dos direitos civis e redes de base comunitária tem sido significativo, tanto no litígio coletivo quanto no monitoramento das operações federais e na denúncia de violações. Grupos de base têm documentado operações de massivas detenções e uso da força ou de unidades militares e federais em localidades onde se afirmava status de “cidade santuário”.


A reação à política da administração Trump nas “cidades santuário” revela um cenário em que o Estado federal mobiliza mecanismos de coerção (judiciais, financeiros, operativos) e enfrenta uma resposta combinada de níveis subnacionais, do Judiciário e da sociedade civil. Observa-se que essa tríade opera como contraponto ao intento de instrumentalização da migração como recurso de governança e mobilização eleitoral.

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidenciamos na presente análise que a política migratória da administração Trump II se consolidou como um instrumento de poder político, sustentado por uma retórica de medo e pela ampliação do aparato repressivo estatal. As ações federais direcionadas contra as chamadas “cidades santuário”, incluindo a mobilização de tropas da Guarda Nacional e o condicionamento de repasses de recursos, revelam uma estratégia de confrontação entre níveis de governo e uma expansão da autoridade executiva em áreas tradicionalmente reservadas à autonomia estadual e municipal.


Do ponto de vista jurídico, constatamos a utilização flexível de dispositivos como a Posse Comitatus Act, a Insurrection Act e os Títulos 10 e 32 do U.S. Code para justificar o emprego de forças federais em solo doméstico. Essa prática, embora amparada por interpretações legais extensivas, suscita questionamentos sobre sua constitucionalidade e sobre os limites do controle civil sobre a atuação militar. Avaliamos que as decisões judiciais recentes, como as liminares concedidas pelos tribunais federais de São Francisco e Portland, demonstram a relevância do sistema judicial como instância de contenção frente a iniciativas potencialmente abusivas do Executivo.


No plano dos direitos humanos, os achados apontam para um cenário de erosão institucional e deterioração das garantias civis, marcado por detenções arbitrárias, separações familiares, uso excessivo da força e vigilância política. A política de dissuasão punitiva e o discurso securitário têm produzido efeitos de medo e retração social entre imigrantes, comprometendo a segurança pública e a confiança nas instituições. Ao associar imigração à criminalidade, entendemos que o governo contribui para a legitimação de práticas discriminatórias e para o aumento da hostilidade social contra grupos racializados.


Em síntese, avaliamos que a política migratória em vigor combina repressão administrativa, expansão do poder presidencial e instrumentalização eleitoral do tema migratório, produzindo impactos profundos sobre o Estado de Direito e a coesão democrática. A legalidade formal dessas medidas não elimina sua ilegitimidade material diante dos padrões internacionais de proteção aos direitos humanos e das normas constitucionais que regem a separação de poderes nos Estados Unidos.


Diante desse quadro, recomenda-se que pesquisadores ampliem os estudos empíricos sobre os efeitos locais das operações migratórias e sobre os mecanismos de resistência institucional e comunitária. Aos formuladores de políticas públicas, apontamos a necessidade de fortalecer mecanismos de monitoramento judicial, instrumentos de transparência e controle civil sobre as forças de segurança e estruturas intergovernamentais de diálogo capazes de preservar o equilíbrio federativo. Por fim, atores locais e organizações da sociedade civil devem ser incentivados a manter redes de proteção de direitos civis e canais de cooperação jurídica e humanitária que assegurem o acompanhamento das violações e a defesa das populações afetadas.


A consolidação de uma política migratória compatível com o Estado democrático de direito depende, portanto, da reconstrução de pontes institucionais entre segurança, legalidade e dignidade humana, dimensões que, sob a atual configuração, encontram-se em grave tensão no país.

REFERÊNCIAS

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