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Democracia, Redistricting e Gerrymandering: Eleições e Contradições da Sociedade Estadunidense

Editores | 29/10/2021 22:00 | Análises
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Quando se refere a um regime liberal democrático, a primeira ideia que vem à mente é a de que todos os cidadãos possuem direitos e deveres iguais, independentemente de sua etnia, classe social, opinião política ou religiosa. Essa noção de igualdade está implícita no princípio de “um homem, um voto”, que, em tese, garante a todos o direito de escolher livremente os seus governantes. Tal princípio está inscrito na introdução da Constituição dos Estados Unidos, quando afirma que “Por mais de dois séculos, a Constituição permaneceu em vigor porque seus criadores separaram e equilibraram com sucesso os poderes governamentais para salvaguardar os interesses do governo da maioria e dos direitos das minorias, da liberdade e da igualdade, e dos governos federal e estadual”.

Entretanto, apesar de se arvorar como uma “farol no alto da montanha” como guia para a democracia e os direitos humanos para todo o mundo, na prática a estrutura política dos Estados Unidos deixa muito a desejar, pois o sistema não assegura a igualdade do voto para todos os cidadãos, possui regras eleitorais que são feitas por critérios oportunistas e subjetivos, trata de excluir acintosamente o direito de voto de minorias étnicas, a escolha do presidente da República é feita de modo indireto e, muitas vezes, a vontade da maioria dos eleitores é ofuscada pelo peso do colégio eleitoral. Exemplo disso é o fato de que constantemente o presidente escolhido pelo colégio eleitoral não tem o apoio da maioria dos votos populares.

Quando se reflete sobre a estrutura política e social dos Estados Unidos, é quase impossível contornar o livro “Democracia na América”, escrito pelo jurista francês Alexis de Tocqueville, que visitou aquele país em 1831 com vistas a conhecer a legislação penal, mas que acabou por refletir sobre os fundamentos de sua ordem democrática . Tocqueville analisa a vitalidade, os excessos e as possibilidades de sobrevivência do modelo político americano, em que deixa permear sua convicção de que uma sociedade adequadamente organizada pode preservar a liberdade dentro da ordem democrática, em contraste com os abusos autoritários que ele identificava na Revolução Francesa de 1789. Nesse aspecto, vale lembrar que a democracia dos Estados Unidos conviveu com a escravidão até o fim da guerra civil, em 1865.

Tocqueville elogiava a participação popular nos Estados Unidos: “Se existe país no mundo onde a doutrina da soberania do povo pode ser razoavelmente apreciada, onde ela pode ser estudada na sua aplicação aos negócios da sociedade, e onde seus perigos e suas vantagens podem ser julgados, esse país é com certeza a América”. Mas ainda assim não deixou de considerar aquilo que ele chamou de “tirania da maioria”, pois esta delimita os espaços em que o debate público ocorre, inclusive cerceando deliberadamente o direito das minorias: “Na América, a maioria levanta barreiras formidáveis em torno da liberdade de opinião: dentro dessas barreiras, um autor pode escrever o que lhe apetecer; mas ai dele se for além das mesmas. Não que corra o risco de um auto de fé, mas expõe o contínuo opróbrio e perseguição. Sua carreira política fecha-se para sempre, em virtude de ter ofendido a única autoridade capaz de abri-la para ele. (...) Acaba o Autor independente cedendo, vencido pelo esforço diário que tem de fazer, e recolhendo-se ao silêncio como se sentisse remorsos por ter dito a verdade”.

Quando se observa o quadro político atual dos Estados Unidos, não podemos esquecer essas reflexões. Ao invés de organizar um sistema político horizontal em que a vontade da maioria possa se expressar, e ao mesmo tempo garantir o espaço para a sobrevivência da minoria, as regras eleitorais dos Estados Unidos são confusas, desequilibradas, contraditórias e excludentes. Isso vale tanto para estados majoritariamente democratas como para aqueles que são republicanos. As regras eleitorais são definidas de acordo com as paixões partidárias e sempre buscam garantir a hegemonia já conquistada, dificultando assim a alternância de poder. Vale lembrar que a Constituição garante aos Estados o direito de escolher o presidente e que cada um organiza o processo como julgar melhor.

O debate sobre as regras eleitorais está bastante acirrado nos últimos meses por conta do processo conhecido como “Redistricting”, ou seja, a reorganização decenal dos distritos eleitorais decorrente da divulgação do Censo de 2020. Com bases nesses dados, todos os Estados buscam reequilibrar as populações de cada distrito, buscando evitar a sub-representação. Normalmente, este processo é organizado pelos parlamentos estaduais, que montam comissões para efetuar uma nova distribuição dos eleitores.

Outra questão importante diz respeito à redistribuição de assentos no Casa dos Representantes, pois o Censo de 2020 mostrou que alguns estados perderam população em detrimento de outros. Acompanhe a tabela abaixo:



Tabela 1- Ganho e Perda de Representantes por Estado após o Censo 2020.

Não houve modificação na distribuição de cadeiras nos demais 37 estados, mas chama a atenção a perda de representantes em dois estados francamente democratas, como California e New York e o ganho em 7 estados com grande influência republicana, como Texas e Florida. Mas como adverte o portal de política Fivethriteight, a contabilidade não é simples, pois “só porque a maioria dos estados que estão ganhando assentos são vermelhos e a maioria dos estados que as estão perdendo são azuis não significa necessariamente que a redistribuição ajudará os republicanos - pelo menos na Câmara. Isso porque muitas das áreas de crescimento mais rápido dos estados vermelhos estão cada vez mais democratas, então é muito saber importante como os novos distritos serão desenhados”.

Mas ainda assim a perspectiva de perda dos democratas é maior, pois os republicanos possuem o controle sobre o “redistricting” em pelo menos 187 distritos, enquanto que os democratas influenciam em apenas 75. Dos demais, 6 são distritos únicos e em 167 as regras são definidas por comissões independentes. 

Conforme discutimos anteriormente, o exercício de poder de maioria é bastante discricionário, pois no estado em que predomina um partido as regras, de forma geral, tendem a favorecer a sua permanência no poder. Vejam-se o caso dos estados de Illinois e New York, onde o “redistricting” será coordenado pelos democratas. A reorganização espacial dos distritos pode ser feita de tal forma que prejudique a representação do Partido Republicano, processo conhecido como “Gerrymandering”, cujo conceito apresentamos neste portal em 15 de outubro, que significa redesenhar os distritos eleitorais com vistas a favorecer um determinado partido, diluindo o peso demográfico de uma comunidade em distritos desenhados especificamente para este fim. 


Quando se observa a imagem 1, é difícil encontrar uma coerência com relação à forma como os distritos foram redesenhados. Nota-se perfeitamente um processo bastante viciado, pois não se encontra nenhuma coerência no mapa a não ser o interesse de organizar os distritos de forma a garantir o maior número de cadeiras para os democratas. No caso acima, o desenho visa garantir aos democratas 14 dos 17 assentos de Illinois na Casa dos Representantes.

O problema não se restringe a um estado democrata. No Texas, o processo de gerrymandering é similar, pois o “redisctricting” proposto busca anular a influência do Partido Democrata no estado. Veja-se a imagem 2, a seguir:


Imagem 2 – Texas: Situação atual e nova redivisão dos distritos, 2021.
Fonte: nytimes.com

O novo desenho dos distritos eleitorais prejudicou a representação do Partido Democrata e também das minorias étnicas que são representadas por este partido, como os afro-americanos e os latinos/hispânicos. Os legisladores republicanos que fizeram o “redistricting” disseram que fizeram uma escolha às cegas, mas isso não coincide com a percepção das minorias prejudicadas.

Uma ação organizada por diversas ONGs, lideradas pela LEAGUE OF UNITED LATIN AMERICAN CITIZENS (LULAC) está contestando no tribunal federal de El Paso o novo mapeamento eleitoral. Eles argumentam que apesar de o Texas ganhar duas cadeiras adicionais no Congresso devido ao crescimento populacional entre 2010, as minorias raciais (incluindo aquelas que se identificam como mais de uma raça) representaram 95% do crescimento populacional do estado, mas o número de distritos de maioria latina diminuiu de 8 para 7, o número de distritos majoritários de afro-americanos diminuiu de 1 para 0, enquanto o número de distritos majoritários brancos aumentou de 22 para 23. Os demandantes argumentam que essas mudanças constituem diluição de votos em violação da Lei Federal de Direitos de Voto

Além dos problemas criados pelo “redistricting” e pelo “guerrymandering”, o direito dos votos das minorias tem sido atacado em diversas frentes pelos membros do Partido Republicano. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a votação nos Estados Unidos é realizada às terças-feiras, um dia útil, o que dificulta a participação de trabalhadores. Além disso, é frequente que nos distritos mais pobres, onde vivem majoritariamente as populações negras e latinas, a quantidade de urnas disponíveis é menor, levando à formação de longas filas, num processo que demanda horas de espera ao relento. De acordo com a CNN, analisando o caso específico da Geórgia, a partir da análise de dados coletados pela Georgia Public Broadcasting e ProPublica, constatou-se uma disparidade significativa no tempo para votar, algo que pode se contatar com o encerramento das urnas às 19:00h: o tempo médio de espera após o horário de fechamento da votação para os não-brancos se estendeu 51 minutos, enquanto que para a população branca foi de apenas seis minutos. 

A legislação eleitoral da Georgia é um caso paradigmático, pois vem sendo reproduzida em outros estados com maioria republicana nas Assembleias Legislativas estaduais. Essas leis visam a dificultar o voto das minorias ao limitar o voto por correspondência, ao proibir a distribuição de água ou alimentos nas filas de votação ou exigir documentação específica para os membros das minorias. Adiciona-se a isso o fato de que as pessoas que sofreram alguma condenação criminal estão proibidas de votar, o que exclui a população afro-americana e latina, cujos índices de encarceramento são superiores ao da população branca.

Concluindo, é importante prestar atenção no resultado do “redistricting”, pois ele deve impactar fortemente as eleições de novembro de 2022, podendo ameaçar a frágil maioria que os democratas mantêm nas duas Casas do Congresso. Ainda é cedo para avaliar as chances do governo Biden, cuja desaprovação, de acordo com a média de pesquisas organizada pelo FiveThirtyEight, é de 50,9%. No entanto, nesses 10 meses de governo muitas das promessas feitas à comunidade latina não se concretizaram, particularmente no que tange ao tema da imigração. Considerando que Donald Trump continua em campanha para voltar ao poder em 2024, qualquer perda de apoio junto às minorias pode comprometer as ambições dos democratas, seja em 2022, seja na reeleição.

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